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É tempo de rememorar Calamandrei

26/06/2001

*Wanda Siqueira

Depois do XVI Congresso Brasileiro dos Magistrados, na cidade de Gramado/RS, o célebre diálogo entre advogado e juiz - imortalizado na obra de Calamandrei "Eles, os juízes, vistos por nós, os advogados" - precisa ser rememorado. O autor, em sua época, destacou-se como advogado polêmico e vocacionado para a luta, e por reconhecer que as qualidades dos magistrados excedem os seus defeitos ao afirmar: "Digo bem dos juízes, apesar de ser advogado. Se o digo, podem pois acreditar-me!"

Passaram-se anos, desde então, e até hoje, advogados e juízes parecem não haver compreendido a profundidade e beleza das lições desse grande jurista, que de forma quase poética destaca as qualidades mais apreciadas nos magistrados - imparcialidade, serenidade, probidade - e nos advogados - paixão na luta pelo direito, combatividade, probidade.

A releitura e a retomada desse diálogo são medidas oportunas a serem adotadas quando se fala em reforma e controle externo, não apenas do Poder Judiciário, mas em reforma e controle externo da OAB, pela classe dos advogados.
 
Advogados e juízes sabem e sentem haver necessidade de reformas e de controle externo nessas instituições. Todavia, há divergências, ainda, quanto ao modo de concretizá-las.
Advogados e juízes sabem e sentem que há, também, necessidade urgente de valorização, fortalecimento e resgate da imagem dos profissionais da carreira jurídica junto à sociedade.
Nos últimos tempos, tanto a imagem dos juízes quanto a dos advogados vem sendo desgastada pelos deslizes e pela conduta aética de poucos, mas que atinge e macula a reputação de todos.
Advogados e juízes precisam rememorar a obra de Calamandrei para compreenderem que a fragilidade ou a fortaleza desses profissionais tem repercussão direta no jurisdicionado e na sociedade.
 
O caminho a ser seguido para que esses profissionais possam agir como verdadeiros agentes de transformação social, comprometidos com o Direito e a Justiça, é, sem dúvida alguma, o diálogo. Para tanto, impõe-se que esse diálogo seja feito à luz dos ensinamentos de Calamandrei:
O JUIZ: À missão do juiz é também impiedosa e tu mesmo és, às vezes impiedoso para com os juízes. Quantas vezes, sob uma beca de juiz, se entrechocam as paixões da humanidade dolorosa! À angústia de um amor traído; o horror de um filho que morre!...Mas há que fazer calar esses sentimentos Quando se está em audiência e o coração do juiz deve ser livre, ainda quando esmagado pelas afeições mais íntimas. Ele, que sente que como um homem que a causa que deve decidir é mil vezes menos importante que a sua dor, deve considerar esta como uma coisa sem importância em comparação com a causa, ainda que mais fútil, que tenha a julgar. E ao passo que o homem soluça interiormente ao pensar no filho que morreu na véspera, o magistrado tem que dar atenção ao advogado que, sem piedade, durante três horas lhe explica os motivos pelos quais um inquilino não pagou a renda.
 
O ADVOGADO: Acusas o advogado de não ter dó de ti quando fala, como se acaso o advogado falasse por prazer. Mas já pensaste alguma vez na dor desse homem, que convencido de que defende uma causa justa, e falando para transmitir ao juiz a sua convicção, se apercebe de que não consegue o seu fim e fala obstinado, angustiosamente convencido de que deve, mesmo que estoure, acrescentar ainda qualquer coisa para fazer triunfar a verdade? Nunca viste, do alto de tua bancada, um advogado no meio das alegações empalidecer e pôr a mão no coração num gesto rápido e doloroso, que o ímpeto do discurso logo apaga?
 
Com o andar dos tempos, se a morte não o ceifar no meio de uma defesa, pouco a pouco há de sentir a impiedosa solidão da velhice; verá os clientes seguirem a moda e preferirem a audácia dos novos à prudência dos velhos, que ficam abandonados nos seus gabinetes poeirentos sem que ninguém os procure, a olharem desiludidos, os armários onde durante cinqüenta anos empilharam pastas agora inúteis, que os herdeiros venderão a peso, sem sequer abrir".
 
Depreende-se, pela leitura do diálogo entre juiz e advogado, que o autor quis destacar a reciprocidade que existe na relação profissional de ambos, fazendo-nos compreender, numa linguagem impregnada de romantismo, que um e outro devem buscar a compreensão mútua para que a missão humana e social dos tribunais possa ser cumprida com grandeza e imparcialidade.
 
Creio que restabelecer esse diálogo é a nossa grande causa, que é grande não por ser dos juízes e dos advogados, mas por ser a grande causa de cada um dos cidadãos brasileiros. Que somente terão justiça de qualidade quando os magistrados e advogados se dispuserem a falar do mal-estar existente na relação profissional entre ambos, quando puderem falar de seus defeitos, de suas qualidades, das dificuldades e angústias vividas sob a beca de um e a toga de outro.
 
O mal-estar que os juízes sentem é quase o mesmo que aflige os advogados, porque nos escritórios de advocacia e nos gabinetes dos juízes é que deságüam as mazelas, o sentimento de dor, a insegurança e o sentimento de injustiça daqueles que lutam pela defesa de seus direitos e que ainda confiam na JUSTIÇA.
Esse mal-estar sentido nos faz lembrar o mal-estar tão bem trabalhado por Freud em sua obra. E por falar em Freud, quem sabe um e outro – juiz e advogado - pudessem buscar no divã o alívio desse mal-estar, a exemplo do que fazem os profissionais dessas áreas em países do primeiro mundo e, bem próximo de nós, na Argentina.
 
O jurisdicionado precisa saber que o juiz, dentre outros poderes, pode protegê-lo de leis injustas amparado nos artigos 4º e 5º da Lei de Introdução ao Código Civil(LICC) que assim dispõem: "quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais do direito; na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum".
 
Com o fortalecimento do Poder Judiciário, esses dois artigos de lei suscitados e aplicados, com a vontade firme de advogados e juízes, vão minimizar as mazelas sociais no Brasil.
Não podemos admitir os cidadãos brasileiros pensarem que os magistrados reuniram-se em Gramado tão somente para reivindicar melhorias salariais; admitir esse entendimento seria deixar consumar-se uma grave injustiça, porque, dentre os Três Poderes, sem dúvida alguma, é o Judiciário que tem demonstrado sentir mal-estar diante da situação em que se encontra a sociedade brasileira.
 
Sabe-se que há problemas dentro do Poder Judiciário, mas há que reconhecer que pelo menos os juízes estão preocupados com esses problemas, começaram a debater essas questões na imprensa, estão buscando o autocontrole - aparentemente utópico, mas possível de concretizar se houver desejo para tanto.
Cabe indagar: será que os membros do Poder Executivo sentem esse mal-estar? E se o sentem, o que têm feito no sentido de adotar medidas concretas para atenderem as demandas sociais, na condição de representantes do povo?
 
O Poder Executivo Federal, por exemplo, fala de estabilidade econômica, entretanto, omite que a frágil estabilidade é sustentada às custas do empobrecimento do povo brasileiro - alto índice de desemprego, dilapidação do patrimônio público, aniquilamento do funcionalismo público, supressão das garantias constitucionais.
Advogados e juízes enfrentam momentos difíceis. Os primeiros com a auto- estima baixa e cercados de injustiçados; mas, paradoxalmente, deles distantes. Os demais, mal remunerados e cercados por milhares de processos que não findam porque as leis processuais os entravam.
 
Cabe indagar, ainda, se advogados têm tido oportunidade, e tempo, para discutirem suas questões e falarem do mal-estar que advém da escuta das injustiças relatadas por seus clientes?
 
Calamandrei há de nos inspirar. É preciso rememorar e retomar o celebre diálogo entre juízes e advogados, sob pena de deixar que o frio computador domine e tiranize suas relações, causando prejuízos irreparáveis ao jurisdicionado.
 
*Advogada
Publicado no Jornal do Comércio em 26/06/2001

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