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Concurso Público e Desvio de Finalidade

09/06/2001

Wanda Marisa Gomes Siqueira*

O Direito Constitucional emergiu do regime liberal francês, quando a Revolução Francesa de 1789 proclamou, na célebre Declaração Universal de Direitos do Homem e do Cidadão, o conceito clássico de Constituição. Nasceu, então, o princípio de igualdade jurídica, instrumento esse que vai de encontro aos privilégios pessoais e à hierarquia das classes sociais, fonte inesgotável da defesa do ideal da egalitè predominante em todas as constituições modernas. 

Na busca desse ideal de igualdade surge a obrigatoriedade do concurso público para o ingresso em cargo ou emprego público. Em nosso país, desde a Constituição de 1967, os concursos públicos só podem ser de "provas e títulos", ficando, assim, afastada a possibilidade de seleção com base unicamente em títulos. Merece menção o fato de o legislador brasileiro, até a presente data, não ter definido na Constituição - ou em lei ordinária - forma ou procedimento que confira segurança aos concursados em relação à lisura e à transparência dos processos seletivos. 
Em conseqüência da intencional omissão do legislador, existem muitas irregularidades e discriminações nos concursos públicos e, via de conseqüência, muitas injustiças são consumadas e muitos privilégios são mantidos. 

O administrador público, no uso de seu poder discricionário, pode, querendo, elaborar editais com aparência de legalidade (com ampla divulgação, com bancas ou comissões organizadoras compostas por elementos capazes e idôneos, com normas para a realização das provas...) para dar a impressão de que se preocupou com a lisura e a transparência do processo seletivo. E, nas entrelinhas, estabelecer normas que atentem contra o princípio da igualdade (limite de idade, altura, peso, sexo, estado civil...) e, mais grave ainda, pode aplicar critérios de avaliação eivados de subjetividade nas provas orais, nos exames psicotécnicos, nos testes de aptidão vocacional, nas entrevistas, na avaliação dos títulos - para proteger os afilhados da administração. 

A indagação que se impõe é sobre o sentido dessa prática: o que o administrador público pretende com ela? Quando isso ocorre, um universo muito pequeno de candidatos preteridos recorre ao Poder Judiciário, para pleitear a nulidade de questões do concurso e, em casos extremos, de todo o processo seletivo. 

Na prática, observa-se que candidatos considerados inaptos em exames psicotécnicos, em testes vocacionais, em exames odontológicos, em provas de aptidão física e na avaliação de títulos têm conseguido comprovar judicialmente o desacerto e a falta de probidade da administração. Sem dúvida alguma, terá havido aí desvio de finalidade, o que os franceses denominam détournement de pouvoir e os italianos chamam sviamento di potere. Nesse caso, não importa que a diferente finalidade com que tenha agido seja aparentemente lícita e justa, o ato será inválido porque houve abuso de discrição com o propósito de favoritismo. 

O tema exige atenção dos profissionais da carreira jurídica e se impõe revelar que, embora tivéssemos conseguido muitas conquistas no texto da nova Carta ? eminentemente sociais e igualitárias -, o momento atual demonstra que esses avanços estão sendo gradativamente suprimidos pelo Executivo, com o apoio de parlamentares. 
Paradoxalmente, a chamada reforma administrativa implementada nos âmbitos estadual e federal também tem aparência de legalidade, mas, quando examinada criteriosamente, evidencia desvio de finalidade, a exemplo do que ocorre na maioria dos processos de seleção pública. 

Vê-se, portanto, que essa prática está disseminada. O que se pode esperar dos agentes públicos quando o próprio chefe do Executivo viola a Constituição Federal sob o argumento de que seus atos são moralizadores e justos? 

Os cidadãos precisam saber que nos concursos públicos ainda existem privilégios e que nem sempre são selecionados os mais capazes. Devem saber que algumas provas exigidas nos concursos públicos se prestam para facilitar a aprovação de alguns apanigüados. 

A partir de sua independência, em 1822, o Brasil promulgou sete constituições. De todas, a mais avançada em relação à administração pública, é a atual. Entretanto, por paradoxal que possa parecer, vem sendo frontalmente violada pelo presidente da República e pelos autoridades responsáveis pela elaboração dos editais de concursos, em especial, nas universidades públicas. 

Razões as temos, portanto, para lembrar ao cidadão que o artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal, ainda não foi revogado e assegura o acesso ao Poder Judiciário sempre que houver lesão ou ameaça ao direito. Por último, cabe lembrar que a Lei n.º 8.429, de 2 de junho de 1992, em seus artigos 11, inciso V, e 12, incisos I, II e III, prevê sanções penais, civis e administrativas para quaisquer agentes públicos que agirem com falta de probidade, frustrando a licitude dos concursos. 

Assim sendo, a cidadania precisa saber, também, que as prerrogativas dos juízes devem ser mantidas para que eles, de forma independente, se provocados pelo cidadão, revisem e anulem atos praticados com desvio de finalidade, possibilitando que os ideais de igualdade, pelos quais nossos antepassados tanto lutaram, sejam mantidos.

*Advogada
Junho 2001

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