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O Fim da Violência Doméstica é uma questão de Honra

19/06/2000

Wanda Marisa Gomes Siqueira*

Espancamento ou ameaças contra a mulher praticados pelo marido são considerados "infrações de menor potencial ofensivo" pelo sistema penal vigente. 

Quando se trata de violência doméstica, o conflito acaba sendo trivializado como se a potencialidade lesiva não fosse intensa conforme comprovam os relatos das vítimas, as matérias jornalísticas e os boletins de ocorrência das Delegacias da Mulher. 

A verdade não pode mais ser abafada, eis que as agressões decorrentes da violência doméstica, independentemente da gravidade e até da existência de lesões físicas, estão causando prejuízos irreparáveis às famílias, em especial, às crianças que convivem com a violência em casa. 

O sistema penal não tem solução para o conflito, eis que o agressor não é ressocializado e muito menos encarcerado - via de regra fica impune destruindo famílias, acabando com a auto-estima da mulher e arruinando a vida emocional dos filhos. 

As vítimas, quando têm força e coragem para representar contra o agressor - o que excepcionalmente ocorre - acabam duplicando suas dores ao exporem-se a um ritual indiferente, formal e até hostil. 

A mulher vítima da violência doméstica não encontra junto à Justiça solução eficaz para sua dor, eis que a realidade processual impõe-lhe um sentimento de impotência frente ao agressor. 

É fácil concluir que a vítima de violência doméstica busca e necessita de apoio moral, psicológico e material, sendo assim, a legislação não deve ser considerada como único instrumento para a sua erradicação, ainda que deva ser o mais importante. 

O Estado deve assegurar às mulheres vítimas de violência doméstica serviços especializados nas áreas de saúde física, mental e assistência social e, nas áreas de segurança pública e justiça, como por exemplo, Delegacias de Atendimento à Mulher, Serviços de Assistência e Orientação Jurídica. 

O Governo Brasileiro e as Nações Unidas firmaram em 25 nov 98 o Pacto Comunitário contra a Violência Infra-Familiar com o compromisso de "capacitar os policiais civis e militares para o atendimento adequado em situações de violência contra a mulher", incluídas as situações de violência doméstica. 

O Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, no Documento Estratégico de Igualdade, sugere o fortalecimento do aparelho Jurídico-Policial mediante a reformulação das Delegacias da Mulher, em face da criação dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais, bem como formula proposta de capacitação dos agentes formais do sistema (advogados, magistrados, membros do Ministério Público, Defensorias Públicas e Serviços de Assistência Judiciária), visando um atendimento qualificado às mulheres em situação de violência. 

Verifica-se que, tanto o compromisso assumido quanto os objetivos desejados, ainda estão distantes de serem concretizados. 

No aguardo de soluções, as vítimas estão a mercê dos agressores, eis que sequer sabem se a melhor opção é recorrer ao sistema penal para se proteger. 

O trabalho dos Centros de Acolhida para Mulheres Vítimas de Maus Tratos (criados na Holanda em 1974) e das Delegacias de Mulheres (criadas no Brasil em 1984) trouxe à tona uma realidade oculta ao constatar que a violência sexual (assédio, abusos em geral e estupro) e os maus tratos ocorrem com maior intensidade do que se pensava. 

Como se vê, o problema é complexo, logo, não basta questionar o sistema penal, que sem dúvida alguma, está banalizando a violência doméstica ao arquivar processos de lesão corporal e ameaça, como se a dor humana pudesse ser arquivada ? a lei penal deve possibilitar a qualquer cidadão, em especial, aos familiares da vítima e ao Ministério Público o direito de representação contra o agressor, sob pena de vitimizar ainda mais as mulheres que encontram-se fragilizadas e amedrontadas (vivendo sob o mesmo teto com o agressor e seus filhos), correndo o risco de a qualquer instante sofrer nova violência, conforme diariamente é veiculado na imprensa. 

As estatísticas comprovam que a mulher vitimizada hesita em recorrer ao aparato repressivo, só o fazendo em casos extremos, quando as agressões são reiteradas, mesmo assim, desejam obter um "Pacto Doméstico", que somente pode ser explicado porque sua auto-estima está baixa e porque o medo que a invade, é um sentimento muito intenso. 

Em matéria publicada na Revista Veja, em julho de 1998, sob o título "A face do silêncio", com a chamada de capa "Covardia ? o terror das mulheres que vivem com homens espancadores", Harazim, que assina o artigo, fala sobre o abalo emocional das vítimas e a hesitação em buscar socorro no sistema penal. "Todas parecem ter uma mesma expressão no olhar. É um olhar vazio, perplexo e derrotado. Ele espelha o caminho que cada uma percorreu até a delegacia, para expor as feridas mais íntimas de sua vida. Muitas desistem à última hora e dão meia volta antes de entrar. Outras ? quase 30% - retornam no dia seguinte para retirar a queixa". 

Diante dessa constatação, depreende-se que o sistema penal como instância de proteção às mulheres contra a violência deve ser reformulado, modo urgente, a fim de possibilitar que ao menos as mães das vítimas possam exercitar o sagrado direito de defender suas filhas, quando as mesmas não tiverem forças para tanto ? essa é uma questão de honra. 

Admitir-se que os agressores fiquem impunes e que suas famílias considerem que em "briga de casal não se mete a colher" é mais do que covardia, é crime contra a vida, contra a saúde e contra os direitos dos filhos do casal em conflito. 

O Brasil há de encontrar uma forma de proteger as mulheres vítimas de violência doméstica, para tanto, os legisladores poderão recorrer ao Direito Comparado onde existem sistemas de proteção organizados com equipes multidisciplinares (árbitros, médicos, advogados, assistentes sociais, terapeutas) propondo medidas preventivas e tratamento adequado, desde medidas jurídicas que exijam do agressor que se abstenha de perseguir, intimidar e ameaçar a mulher ou de fazer qualquer uso de método que prejudique ou ponha em perigo sua vida ou integridade, ou danifique sua propriedade, sob pena de perder o pátrio poder e outras penalidades. 

É de lamentar que no Brasil o espaço da família seja considerado uma espécie de território fora da lei dando lugar ao arbítrio e à violência. 

A cidadania não pode mais ser indiferente e muito menos cúmplice dos acontecimentos violentos que ocorrem dentro de casa e, muito menos pode a família das vítimas silenciar por preconceito ou medo. 

Estudiosos do assunto concluem que o perfil do agente em casos de lesões corporais ocorridas no âmbito doméstico, não é o do delinqüente reincidente, embora a conduta agressiva seja reiterativa. 

Paradoxalmente, os relatos das vítimas revelam uma agressividade intensa, marcada pela destruição dos objetos domésticos, socos, pontapés, esganaduras e até mordidas. 

As estatísticas comprovam que a crueldade inerente ao comportamento é revelada pelo uso dos mais diversos instrumentos contundentes: facas, facões, armas de fogo, cabos de vassoura, cabides, cintas, ferramentas, etc. 

Como que a justificar as agressões, os agentes, muitas vezes, costumam argumentar que agrediu a mulher porque a mesma se recusou a manter relações sexuais com ele. 

Na obra recente da professora Leda Hermann "A Dor que a Lei Esqueceu ? Comentários a Lei 9099/95" foram transcritos dados constantes de dezenas de termos circunstanciados e nas atas de audiência, que foram objeto de pesquisa em perícia realizada, onde a autora pode demonstrar que o problema das mulheres vítimas de violência doméstica está sendo trivializado no subsistema dos Juizados Especiais Criminais - os processos acabam sendo arquivados porque a vítima não comparece ou manifesta seu desinteresse no prosseguimento do processo, (em alguns casos são firmados acordos onde o agressor compromete-se a mudar o comportamento e em outros casos é aplicada a multa, no mínimo legal de (R$ 33,33) obviamente aceita pelo agressor). 

É fácil concluir que se o legislador desprezou, ignorou e subestimou a dor da mulher vítima da violência doméstica, cabe a cada um de nós, especialmente aos familiares das vítimas, não desanimar diante do problema, ao contrário, tratá-lo como uma questão de honra, trilhando todos os caminhos que se fizerem necessários para protegê-las e libertá-las de seus algozes. 

Até bem pouco tempo, a sociedade brasileira somente se indignava e reprovava a atitude do homem que batia na própria mãe - quando a vítima é a esposa ou companheira, há uma certa conivência e indiferença decorrentes de consentimento social, gerado pelo sistema patriarcal vigente. 

É uma questão de honra, portanto, lutar contra essa odiosa violência que está destruindo famílias e vitimizando milhares de mulheres em nosso país, como é uma questão de honra exigir que o legislador altere o teor da Lei nº 9099/95 para dar poder de representação ao Ministério Público e aos familiares das vítimas da violência doméstica.

*Advogada

Junho 2000

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